Memórias não se Aposentam: Rose Beck fala sobre a importância de “ensinar a pensar”
19. junho 2015 | Escrito por Jornalismo IFSC | Categoria: Câmpus Florianópolis-Continente, Câmpus São José, Gestão de Pessoas, MatériasO IFSC está lançando a série de entrevistas “Memórias não se Aposentam”. O objetivo é preservar um patrimônio valioso: a memória dos servidores aposentados, que muito contribuíram para a instituição ser o que é hoje, e resgatar fatos que marcaram a história do IFSC na visão de seus protagonistas. A série será publicada no Link Digital e no site do IFSC a cada 15 dias.
A primeira entrevistada da série é a pedagoga Rosamaria da Silva Beck. A busca pela democracia e a autonomia do pensar fizeram parte da trajetória estudantil e profissional de Rose Beck. Ela atuou como técnica em assuntos educacionais do Câmpus São José, onde foi uma das responsáveis pela implantação do Colegiado do Câmpus, e foi a primeira diretora do Câmpus Florianópolis – Continente. Aposentou-se em 2011, mas sempre que pode visita o IFSC, para rever os antigos colegas.
Rose Beck é natural de Florianópolis e começou sua trajetória profissional bem jovem, como professora normalista (formação de Magistério) na cidade de Indaial. Convivendo com alunos muito carentes, filhos de operários, aprendeu com a diretora, Petrolina Heinzen (mãe da ex-prefeita de Florianópolis, Ângela Amin), que “o aluno é a essência da escola. O professor faz parte de toda a aparelhagem da escola para que aluno aprenda mais e que tenha um pouco mais de educação do que aquela que a família pode dar”.
Ao voltar para Florianópolis, trabalhou em algumas escolas e, em 1961, ingressou no curso de Pedagogia da recém-criada Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Quando a Ditadura Militar foi instaurada no Brasil, em 1964, Rose era militante da Juventude Universitária Católica (JUC) e da União Nacional dos Estudantes (UNE). Pelo receio da perseguição política, em 1965 foi enviada pela família para estudar em São Paulo e a irmã, para o Rio de Janeiro. Essa foi a oportunidade para ela cursar uma especialização na Universidade de São Paulo (USP) realizada pela Unesco e o Ministério da Educação.
Uma forma diferente de pensar a educação
No ano de 1965, enquanto o Brasil era governado pela Ditadura Militar, São Paulo era o centro intelectual e cultural do País. Os professores da pós-graduação eram todos estrangeiros, suíços, franceses, argentinos, e Rose teve contato com as teorias contemporâneas em educação. Além disso, peças teatrais, concertos musicais e exposições de arte aconteciam frequentemente na cidade universitária da USP, reduto de intelectuais e artistas na época da Ditadura. “Sabe quem era o meu colega de câmpus? O Chico Buarque! Ele ficava de lá para cá tocando violão. Onde ele menos ía era na sala de aula dele. Ele era a coisa mais linda, um menino!”, recorda Rose.
Ainda durante a especialização, Rose teve a oportunidade de participar de diversos seminários com importantes teóricos como Paulo Freire e Fernando Henrique Cardoso. “O curso foi muito bom para nós, pois abriu nossa cabeça, os 45 alunos. A gente teve contato com a cultura do Brasil na época. Íamos para palestra dos filósofos, tinha todos aqueles militares, mas a gente ía”, recorda.
No ano seguinte Rose voltou para Florianópolis para terminar o curso de Pedagogia. Como havia poucos professores com formação superior e especialização, atuou na Faculdade de Educação e na Secretaria Estadual de Educação, na área de planejamento. Assim, participou da equipe que elaborou o primeiro plano de educação estadual unificado no Brasil. Também atuou na Delegacia do Ministério da Educação (MEC) em Santa Catarina e, após 25 anos de trabalho, aposentou-se.
Ingresso no IFSC e a implantação do Colegiado
Após a aposentadoria no Estado, em 1990 passou no concurso para o IFSC e começou sua atuação na Uned São José, hoje Câmpus São José. Mais uma vez, assim como havia acontecido com o projeto pioneiro na Secretaria Estadual de Educação, Rose participou da implantação de algo novo, que foi a criação do Colegiado da Unidade. Com a Democracia recém-implantada no Brasil, era preciso levar o processo de democratização também para a comunidade escolar.
Segundo Rose, já na prova do concurso as ideias democráticas do processo de administração da escola ficaram evidentes. “Era tudo o que eu aprendi em São Paulo. As ideias do pessoal da Unesco eram muito avançadas. Então, quem passou na prova era quem já tinha esse conceito em educação”, destaca. Assim, o câmpus iniciou o processo de criação do Colegiado com a participação de servidores, alunos e pais, uma iniciativa inédita no IFSC e entre as escolas técnicas brasileiras.
Foram quatro anos de trabalho até a criação do Colegiado da comunidade escolar, formado por professores, alunos, diretor de Ensino, diretor Administrativo, representantes dos técnicos-administrativos e pais de alunos. “Perguntavam o porquê da participação dos alunos na discussão sobre educação. Aí a gente dizia que o aluno podia não entender nada de educação, mas sabia o que era bom para ele”, justifica Rose, escolhida como secretária do Colegiado. Para ela, a participação dos alunos era uma forma de ensiná-los a pensar e expor opiniões, “a saber pensar e saber dizer o que pensa”.
Na sequência, foi criado o Regimento do Colegiado, processo a partir do qual também foi reformulado o próprio Regimento da Uned São José, que até então era apenas uma cópia do Regimento da Escola Técnica de Florianópolis. Para todo esse processo, foi realizada uma semana de assembleias com todos os professores, técnicos-administrativos e alunos. “Até hoje me emociono quando lembro disso. Os aluninhos que não tinham nem coragem de abrir a boca levantando o dedo e dando opinião”, recorda. Assim, a participação democrática começou a fazer parte da formação dos estudantes – para além dos conteúdos das disciplinas, o amadurecimento e compreensão da sociedade.
A participação da comunidade escolar refletiu-se na sala de aula. Os professores, a maioria com formação na área de exatas, passaram a dar mais atenção às questões pedagógicas. “Eles descobriram que aluno pensa”, destaca Rose. Segundo ela, a intenção não era “passar a mão na cabeça” dos alunos, mas poder conversar de igual para igual.
A Uned São José oferecia os cursos integrados de Telecomunicações e Refrigeração e Ar Condicionado. Rose recorda que os alunos eram muito jovens e pobres, vindos de regiões agrícolas da Grande Florianópolis. Muitos formavam-se e não voltavam para suas comunidades. “A gente foi causa de evasão de muitas comunidades. Os cérebros daquelas escolinhas vinham estudar com a gente e não voltavam mais, porque lá não havia nem luz elétrica. Não havia oportunidade para eles”, recorda.
Rose se diz feliz ao ver as oportunidades que a educação abre aos alunos e a expansão do ensino técnico no Estado. “O que dizer de um menininho lá do interior de São Miguel do Oeste que fala alemão, e agora está fazendo um estágio na Alemanha? Que conhecimento esse menino vai ter? São oportunidades que não se tinha antigamente”, destaca. Com a integração ao ensino médio, é possível oferecer a formação técnica aliada à cultura geral e o pensamento crítico.
Transformação da Educação Profissional
Rose foi testemunha da grande transformação pela qual passou a educação técnica no Brasil. Conta que, quando criança, as escolas técnicas, ou a Escola de Aprendizes e Artífices, primeira nomenclatura do IFSC, eram alvo de preconceito. “Lembro de minha mãe dizendo para o meu irmão: ‘se você não se endireitar, vou te matricular na Escola de Aprendizes’! Quando fiz concurso para a escola técnica, minha mãe achou estranho, perguntou o que eu ia fazer lá. Eu disse pra ela que era uma escola de trabalho, que se devia dar valor a ele”, recorda. A partir da resolução do MEC, de oferecer o ensino médio integrado ao ensino técnico, o perfil mudou, abrindo uma perspectiva de futuro para os estudantes.
Para Rose, a “escola técnica é um tesouro da educação no Brasil que ninguém dava valor. Então, Graças a Deus que houve alguém que deu-se conta de quão isso é importante para o povo brasileiro”. Segundo ela, o trabalho manual não é valorizado no Brasil. Assim, a escola técnica apresenta a visão do mundo de formar para o trabalho técnico, tão importante quanto carreiras mais clássicas como Medicina ou Engenharia. “Acho que essa escola mostrou para a classe média e a classe baixa brasileira que trabalho é uma forma de ser gente! Nem todo mundo vai ser médico, engenheiro ou advogado. Para tudo que é coisa tem que ter trabalhador”.
Câmpus Continente
Em 2006, Rose deixou o Câmpus São José para atuar na direção geral, quando o IFSC ainda era Cefet. Na época, o prédio onde hoje está instalado o Câmpus Florianópolis-Continente, em Coqueiros, era uma Escola da Comunidade, projeto criado no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Essas escolas eram construídas e equipadas pelo Governo Federal e administradas por instituições de ensino privadas, que tinham por obrigação oferecer 50% das vagas de forma gratuita. Porém, não houve continuidade no projeto, que estava nas mãos da Unisul, e a Escola da Comunidade de Florianópolis deixou de funcionar. Foi então que, a partir de 2006, no governo Lula, quando da expansão do ensino técnico no Brasil, as instalações da Escola foram transferidas para o IFSC e transformada no Câmpus Florianópolis-Continente.
A Unidade Florianópolis, atual Câmpus Florianópolis, já tinha um grupo de estudos para implantação de cursos de turismo e gastronomia, coordenado pela professora Daniela de Carvalho Carrelas. Porém, era preciso um novo local para implantação desses cursos. A então diretora Consuelo Sielski aceitou o desafio e recebeu o novo prédio, no qual foi investido recurso do MEC para equipamentos escolares. Como a professora Daniela estava em licença-maternidade, Rose foi chamada para dirigir a nova unidade.
Mais uma vez, ela foi pioneira na vida profissional. Com a professora Patrícia Matos Scheuer e a arquiteta Louise Maria Monguilhott (técnica-administrativa), iniciou o projeto dos cursos, a estruturação das instalações físicas e a aquisição de equipamentos. Rose e a professora Patrícia, cuja mãe tinha uma padaria, começaram a visitar cozinhas industriais, padarias e confeitarias para conhecer os equipamentos e definir o layout das instalações para os novos cursos de Cozinha, Panificação e Serviços de Restaurante.
“Imagina uma pedagoga vendo coisa de cozinha! Tive que aprender e acabei entendendo dessa coisa toda! A gente não tinha dinheiro para contratar consultor”, recorda Rose. O prédio já fora construído com a finalidade de ser uma escola de gastronomia, porém, a estrutura estava deteriorada e não havia equipamentos.
A partir das contratações por concurso público, os novos professores começaram a contribuir com o layout das cozinhas e a comprar o material de consumo para as aulas. Logo também foi implantado o curso de Hospedagem. Foram feitos convênios com hotéis para estágio dos alunos.
Com a volta da diretora Daniela, em 2007, Rose assumiu a diretoria de Administração – cargo que aceitou a partir da experiência que adquiriu na implantação do Câmpus. Ficou no cargo até 2011, quando se aposentou.
Parabéns pela iniciativa, adorei! Já conhecia a trajetória da Rose, mas seu relato sempre é forte e emocionante.476