Reportagem especial: Imigrantes buscam novas oportunidades em cursos do IFSC

17. dezembro 2015 | Escrito por | Categoria: Câmpus Caçador, Câmpus Florianópolis, Câmpus São Carlos, Matérias
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Formatura dos alunos haitianos no Câmpus Caçador

Desde o início do ano, o Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) colabora com a inclusão de imigrantes haitianos na comunidade e no mercado de trabalho através do curso de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira para Estrangeiros, ofertado nos câmpus Caçador, Gaspar, Jaraguá do Sul e São Carlos. Cursos ofertados pelo Pronatec também já formam alunos estrangeiros. Em 2016, o trabalho da instituição voltado para imigrantes e refugiados continua. Até o dia 27 de janeiro, adolescentes a partir de 15 anos e mulheres que estejam em situação de vulnerabilidade social podem se inscrever para o curso Mulheres Sim – Inserção Cultural e Profissional para Imigrantes e Refugiadas, ofertado pelos câmpus Caçador, Chapecó e Gaspar. No Câmpus Itajaí, as aulas deste curso já iniciaram em novembro deste ano.
As ações promovidas nos câmpus para os imigrantes reforçam a missão de inclusão social do IFSC e geram uma reflexão sobre a situação dos haitianos que chegam ao Brasil, principalmente após o terremoto que atingiu o Haiti em 2010. Confira abaixo alguns relatos que traduzem como tem sido essa experiência, que está ajudando refugiados a superarem as diferenças culturais e de idioma encontradas no Brasil.

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Alunos do Pronatec do Câmpus Florianópolis

No Câmpus Florianópolis, sete dos 20 alunos do curso de mestre de obras, ofertado pelo Pronatec, são oriundos do Haiti, e quatro outros imigrantes fazem o curso de desenhista da construção civil. Nas aulas do curso de mestre de obras, os haitianos já estão integrados, segundo o coordenador José Antonio Bourscheid, e não há problemas de compreensão. “Nem foi preciso usar intérpretes, eles conseguem se comunicar em português suficientemente”, esclareceu o professor. Conforme Bourscheid, há muita troca de experiência na turma, já que o curso visa qualificar o trabalhador que é ou já foi da área de construção civil, e tem como pré-requisito justamente que os alunos tenham conhecimento prático. Superados os temores iniciais de que haveria dificuldades para a inserção dos haitianos, Bourscheid destaca que eles são muito educados e interessados nas aulas, e já planejam fazer outros cursos no IFSC.

A orientadora do curso de desenhista, Angela Regina Poletto confirma a dedicação dos haitianos aos estudos. “Eles são exemplo para os colegas”, avalia. Angela também destaca o bom nível de escolaridade que a maioria deles possui, inclusive com fluência nos idiomas francês e inglês. Conforme a orientadora, os haitianos querem aprimorar sua qualificação profissional para melhorarem suas perspectivas de trabalho, já que precisam se sustentar e ainda enviar dinheiro para os familiares que ficaram no Haiti. “Alguns estão aqui há dois anos, outros mais e nunca voltaram para uma visita, sofrem pela saudade de filhos e esposa. Outros começam a formar família aqui”, constata Angela.

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Alunos do Pronatec do Câmpus Florianópolis

Um dos que sente falta da família ainda residente na República Dominicana é Wilbersen Pierre-Louis, que planeja trazer para cá a esposa e os quatro filhos de 14, 10, 5 e 2 anos assim que possível. Ele mostra a foto guardada na pasta de documentos, enquanto fala da oportunidade em fazer o curso do Pronatec, especialmente por ser gratuito. Para ele, num mundo tomado pela tecnologia é preciso se aprimorar. Em sua percepção, a crise econômica tem afetado a dinâmica do trabalho, causando instabilidade, tendo já alguns compatriotas recém-chegados que ainda não encontraram emprego. A mesma constatação tem Franqlin Kueln, 33 anos, residente em Florianópolis há dois anos. Com ensino médio já concluído em seu país, ele faz o curso Pronatec na expectativa de um outro futuro.

Mais perspectiva de futuro é o que almeja também Loukendy Frederic, 27 anos, que estudava Direito em seu país e gostaria de continuar este curso aqui, mas precisa providenciar a tradução dos documentos. Ele chegou há dois anos e meio e já trabalhou como repositor de produtos em supermercado e agora atua como carpinteiro. Loukendy deixou para trás mãe e irmãos, mas está feliz em Florianópolis. “Lá havia muita insegurança quanto ao futuro devido ao clima político do país e de problemas como o terremoto ocorrido em 2010,” conta o aluno.

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Alunos do Pronatec do Câmpus Florianópolis

Apesar do terremoto ser considerado um dos principais motivos da vinda dos haitianos, eles não se consideram vítimas. “Não somos coitados, viemos com o propósito de trabalhar”, explica Ismael Elreus, 35 anos, que vive na capital há um ano e oito meses. A declaração confirma uma das constatações de um levantamento do Grupo de Apoio a Imigrantes e Refugiados em Florianópolis e Região, iniciativa da Arquidiocese do município, de que os haitianos não querem e nem devem ser vistos apenas como vítimas do destino, pois são agentes de sua própria história e devem ser respeitados como tal. Satisfeito em realizar o curso de mestre de obras, Elreus ao mesmo tempo se queixa da falta de reconhecimento profissional. Segundo ele, mesmo tendo experiência como pedreiro em seu país, ao ser contratado aqui, precisou começar como servente de obra, além de observar diferenças salariais em uma mesma função. A discriminação no trabalho é um dos problemas enfrentados pelos imigrantes, que apontam também abusos na cobrança de aluguel de casas e quartos e as dificuldades de inserção e de como proceder em várias situações burocráticas e do cotidiano.

Para o grupo de apoio, a falta de articulação das próprias instituições do poder público tem sido um dos desafios a serem vencidos para auxiliar os imigrantes. Uma queixa comum relatada no levantamento do grupo de apoio é de que funcionários públicos e empregadores estão desinformados quanto à validade de documentos de identificação quando os imigrantes tentam acessar os serviços públicos, principalmente educacionais. A possibilidade de frequentar um curso gratuito como o Pronatec só surgiu para eles após frequentarem aulas de português para estrangeiros, e pelo empenho da professora da disciplina, que mostrou esta alternativa para o grupo. A professora é citada com muita gratidão e carinho, sendo para eles “a pessoa que fez a diferença” numa cidade nova e estranha. O levantamento do grupo de apoio também constatou que os imigrantes não formam um grupo homogêneo, e que a mídia pouco tem contribuído para transmitir o teor real das experiências destes novos moradores.

Câmpus São Carlos

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Formatura da primeira turma de imigrantes no Câmpus São Carlos

Marcos Treptow, professor do Câmpus São Carlos, lecionou para duas turmas de imigrantes e afirma que o curso é muito mais do que o ensino de um novo idioma. Para ele, ensinar Língua Portuguesa aos haitianos naturalizados brasileiros é uma forma de acolhimento. Marcos explica ainda que como muitos alunos vieram para Santa Catarina recrutados por uma empresa de alimentos da região, surgiram muitas dificuldades de comunicação. “Como eles já estavam em contato com a língua no dia a dia por conta do trabalho, o ensino do português passou a ser urgente, de uso imediato do aprendizado. E este ensino teve que vir em forma de conversa, de situações do cotidiano. Muitos deles vieram do Haiti sabendo falar, além do crioulo, a língua espanhola e o francês, mas os supervisores da empresa não são bilíngues. Sem falar que o uso de máscaras, obrigatório dentro da fábrica, atrapalha a fala”.

As aulas eram ministradas por Marcos na Igreja Quadrangular de Águas de Chapecó para facilitar a rotina de trabalho e estudos dos alunos. O professor conta que quando o curso foi ofertado, 92 haitianos manifestaram interesse, resultando em uma grande fila de espera para ingressar no curso.
Duas turmas foram criadas em maio deste ano, nos períodos vespertino e noturno, com dois encontros semanais cada. Sem recursos audiovisuais para auxiliar o ensino do idioma, as aulas eram baseadas em diálogos entre os alunos e o professor e no uso de revistas, folderes turísticos, jornais, folhetos publicitários e mapas que pudessem auxiliar na abordagem da escrita, leitura, interpretação de texto e oralidade, além da apresentação de aspectos da cultura do sul do Brasil. Entre os métodos utilizados no ensino da Língua Portuguesa, Marcos cita a teatralização de histórias e o Quadrado Mágico, que trabalha a construção de frases a partir de um verbo, um sujeito e um tempo de ação escolhido pelos alunos, inserindo outros elementos como advérbios, substantivos, adjetivos, pronome e numeral listados no Quadrado Mágico.

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O professor Marcos Treptow com o aluno Joel Val e sua filha

Com a necessidade de integração à sociedade e de adaptação aos novos costumes e ao novo idioma, a convivência com os alunos ultrapassou a sala de aula, tornando o professor um guia e grande amigo nas horas de dificuldades enfrentadas pelos alunos haitianos. Marcos tem sido conselheiro dos alunos em diversas situações como vivência em comunidade e direitos do cidadão. Segundo Marcos, os imigrantes não foram instruídos sobre leis, direitos e deveres quando chegaram aqui, o que dá margem para ilegalidades trabalhistas. “Outro problema que eles enfrentam é que a Embaixada não deixou claro se os diplomas de ensino fundamental, médio e superior valerão no país e de que forma eles podem validar. Tenho um aluno que é formado em Medicina e que foi voluntário junto com os soldados brasileiros em missão de paz no Haiti. Poderia exercer a função se pudesse comprovar algo”, lamenta o professor do Câmpus São Carlos.

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Formatura da segunda turma no Câmpus São Carlos

Sobre o convívio com brasileiros, o professor Marcos conta que muitos imigrantes preferem andar em grupos e dificilmente tem laços com outras pessoas. “É uma questão de identificação de culturas. É muito mais fácil manter a cultura deles aqui do que aderir à cultura do Brasil. Acho importante que eles não deixem a cultura haitiana se perder. Vejo que eles ficam muito felizes em expor a cultura deles”, afirma Marcos, citando uma festa realizada no Câmpus São Carlos onde os alunos confraternizaram com comida e música da sua cultura e dançando o Konpa, ritmo típico do Haiti. O professor Marcos afirma que nenhum aluno relatou situações de preconceito diretamente, mas que alguns brasileiros não tem paciência com a dificuldade de comunicação dos imigrantes. “Pessoas comentam sobre os empregos que os haitianos supostamente tiram dos brasileiros. Na verdade, os haitianos movimentam e muito a economia do estado, porque compram, pagam aluguel e ganham pouco, gerando lucro para as empresas. Sem falar que nenhum haitiano está aqui a passeio. Eles trabalham para sustentar suas famílias que estão no Haiti. Mandam dinheiro para fora do país e pagam impostos por isso”, avalia.

Sob a análise do professor Marcos Treptow, os imigrantes haitianos escolheram o Brasil para ser sua nova casa. “Eles não gostam muito de falar sobre o que viveram no Haiti. É um trauma. A própria viagem até o Acre e depois até aqui. Foram trazidos para cá em más condições, ficaram muito doentes. Querem trazer o restante da família para cá. Alguns vieram sozinhos, outros trouxeram filhos, maridos, esposas. Para dizer a verdade, nem gosto muito de chamá-los de imigrantes, estrangeiros. Eles estão começando a vida deles aqui e devem ter os mesmos direitos. São brasileiros. Afinal, todos nós somos de famílias de imigrantes, que vieram reconstruir suas vidas no Brasil. Os haitianos, quando chegam aqui, se tornam brasileiros”, conclui Marcos.

Câmpus Caçador

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Alunos participam do projeto Futebol Unindo Etnias no Câmpus Caçador

As duas primeiras turmas do curso de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira para Estrangeiros do Câmpus Caçador tiveram início em março e abril de 2015. A professora Luana de Gusmão Silveira afirma que o aprendizado dos alunos é bom porque muitos falam, além do crioulo, espanhol e francês, que são línguas com estrutura gramatical semelhante ao português. No entanto, as longas jornadas de trabalho e o fato de morarem muito próximos ou até mesmo na mesma casa prejudica a prática do idioma entre os alunos. Mesmo assim, a dedicação deles é grande. A professora conta que as aulas foram se tornando dinâmicas aos poucos.

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O aluno Emmanuel Daseme do Câmpus Caçador

Assim que tomou posse do cargo de professora de Língua Portuguesa, em fevereiro deste ano, Luana assumiu o desafio de ensinar o idioma para os imigrantes. “Trabalhei com diferentes públicos, do ensino fundamental, médio, graduação, mas ainda não havia trabalhado com imigrantes. O trabalho do português como língua adicional é distinto da abordagem do português enquanto língua materna. Então, precisei estudar muito para organizar as aulas e conseguir proporcionar um bom aprendizado”, conta.

Para os alunos do Câmpus Caçador, a urgência em aprender o idioma também tem ligação com a necessidade de inserção no mercado de trabalho e inclusão na comunidade. A maior parte dos alunos do curso trabalha nas indústrias de plástico e de cabos elétricos e tem a mesma dificuldade de comunicação encontrada pelos alunos do Câmpus São Carlos. Para Luana, saber falar português pode garantir que direitos sejam garantidos. A professora cita o caso do aluno Jacquely Exantus que trabalhava na construção civil e teve seus direitos trabalhistas violados. “Ele caiu de uma certa altura e machucou o joelho. Precisou ser hospitalizado e quando voltou para a empresa, assinou uma série de papéis sem saber do que se tratava. Ele estava assinando sua demissão. Depois disso, me disse que, se soubesse falar português antes, isso não teria acontecido. Hoje Jacquely tem outro emprego, mas sempre pega atestado por conta das dores. Agora ele tem o apoio de assistentes sociais e psicólogos do câmpus para buscar seus direitos”, conta.

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Terceira turma do Câmpus Caçador

As ações no Câmpus Caçador feitas para os imigrantes tem crescido a cada dia. No dia 24 de novembro, a terceira turma do curso de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira para Estrangeiros iniciou as atividades com alunos oriundos do Haiti e da Costa do Marfim. O interesse pelo curso surpreendeu a professora que passou a dar aula para 37 alunos em uma turma com 30 vagas. Segundo Luana, os alunos não matriculados sabem que não poderão ter o diploma quando terminarem o curso e que mesmo assim a vontade de aprender a Língua Portuguesa falou mais alto.

Novas oportunidades

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A aluna Diulene cantando na Mostra de Cultura Haitiana

Em fevereiro, mais um curso voltado para imigrantes inicia no Câmpus Caçador, dessa vez atendendo a demanda de mulheres em vulnerabilidade social que necessitam de orientações e inclusão no mercado de trabalho. No câmpus, o curso Mulheres Sim – Inserção Cultural e Profissional para Imigrantes e Refugiadas terá foco em oficinas de artesanato, além de trabalhar com a temática de direitos da mulher e inserção no mercado de trabalho. A professora Luana conta que as alunas no curso de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira para Estrangeiros sempre olhavam para a sala de costura do câmpus com curiosidade, o que levou a inclusão de oficinas de costura na grade do curso.

As alunas Djenie François e Camise Dorsainvil, que fizeram parte da segunda turma de Língua Portuguesa, já se inscreveram no curso do Mulheres Sim. As duas alunas se destacam por suas histórias de vida e dedicação: Djenie frequentava as aulas com o filho Lovens, de cinco meses, por não ter com quem deixá-lo e conseguiu concluir o curso. Camise, formada em Agronomia, também é mãe. Sua filha Maily, de seis anos, ficou no Haiti com a avó enquanto Camise tenta juntar dinheiro pra trazê-la ao país.

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Alunas do Mulheres Sim do Câmpus Itajaí

A vida de muitas haitianas que vem para o Brasil mostra uma realidade que vai além das dificuldades dos outros imigrantes. Luana relata que muitas haitianas chegam grávidas ou engravidam no Brasil, o que agrava as dificuldades financeiras e de adaptação no país. Em novembro, o governo federal emitiu uma lista com 43.871 beneficiários, permitindo que imigrantes haitianos solicitem residência permanente no Brasil, passando a ter acesso a direitos como saúde, educação, carteira de trabalho e de identidades permanentes e benefícios previdenciários, além de poder visitar a família no Haiti ou recebê-la no Brasil. Até então, os imigrantes haitianos contavam com documentos provisórios de solicitação de refúgio.

A notícia do tão esperado benefício foi recebida com alegria pelos que encontraram seus nomes na lista. No entanto, o sentimento de angústia continua para os que ainda aguardam o benefício e pelos imigrantes que não tem origem haitiana. A Lei da Imigração, de 1980, está sendo revisada para se adequar ao grande número de imigrantes que procuram abrigo no Brasil, fugindo de catástrofes naturais, pobreza e conflitos políticos.

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